*Por Rafael Fernandes Maciel
Desde sua criação, a internet possibilitou o surgimento de um ‘sem número’ de soluções disruptivas. Gigantes empresariais, como Facebook e Google, nasceram pela criatividade de acadêmicos brilhantes. A produção intelectual na forma de algoritmos dessas e de outras aplicações inovadoras se deu, na sua maioria, em ambientes sem estrutura apropriada, a partir do alojamento da universidade, de uma garagem ou mesmo na mesa de um café. Para disponibilizarem sua criação ao mundo bastava fazerem o upload do código em algum domínio na web e pronto: qualquer um…[read more=”Continuar lendo…” less=”Menos”]
….e em qualquer lugar do mundo poderia acessá-la, bastando que tivesse uma conexão à internet. Esses inovadores não precisaram ajustar acordos comerciais com gigantes das telecomunicações para que a utilização da banda para esse ou aquele serviço lhes fosse permitida. Essa sempre foi uma das principais características da web: uma baixa barreira de entrada, o que permitiu uma escalada de aplicações disruptivas, sobretudo nos últimos 20 anos.
No início da década de 30, Edwin Howard Armstrong apresentou à comunidade científica o rádio pela frequência FM, a RCA, empresa da qual era empregado e que detinha o controle do mercado de rádios AM, tratou logo de sufocar a nova criação, usando de seu poderio econômico para impedir a fácil e rápida propagação da nova tecnologia, seja mediante lobby, ações legais ou mesmo ao simplesmente engavetar a ideia de Armstrong por dois anos. O medo que a RCA teve em perder espaço naquela época é o mesmo que pode comprometer o futuro da inovação nesse momento.
A recente decisão da FCC, Comissão Federal das Comunicações dos Estados Unidos, órgão que regula as telecomunicações nos Estados Unidos da América, voltando a enquadrar a internet como um “serviço de informação” e a internet móvel, como “serviço de interconexão”, retira a rede mundial do âmbito de regulação da FCC, podendo ser comercializada de acordo com interesses do mercado. Ou seja, com a decisão da FCC, o princípio da neutralidade da rede adotado pelo mesmo órgão no governo Obama, deixou de ser aplicável nos EUA.
E porque é tão importante a preservação desse princípio? A neutralidade da rede garante o tratamento isonômico dos pacotes de dados impedindo acordos comerciais que visem prestigiar um conteúdo em detrimento de outro. Na prática, as teles americanas estão livres para cobrar mais por aplicações que demandem maior espaço de banda (como serviços de streaming, como Netflix, Youtube, Amazon Prime, dentre outros) ou por simplesmente contrariarem seus interesses comerciais. O fim da neutralidade da rede coloca em risco a inovação da garagem, do café, do alojamento, comprometendo a isonomia da rede, haja vista que empresas ou tecnologias nascentes não terão como competir com grandes corporações que terão dinheiro para bancar as novas condições comerciais, sufocando os novos negócios. Importante lembrar que a não isonomia da rede não apenas impede serviços inovadores privados, como coloca em xeque até mesmo serviços públicos que podem tornar-se mais custosos e, consequentemente, deixarem de ser viáveis.
O aumento do custo para novos players terem seus serviços disponibilizados com qualidade para o usuário final é um dos lados problemáticos da ‘não neutralidade’. Essa pode ainda ser agravada quando pensamos que também o consumidor final poderá ser atingido diretamente, vez que, sem a garantia da neutralidade, poderá ser cobrado por pacotes diferenciados para acessar determinado site ou aplicativo. Poderão as teles usarem seu poderio nas duas pontas, contra os serviços inovadores que comprometerem seu negocio, como também na ponta do usuário que apenas acessará a “concorrência” se pagar por um pacote mais caro.
Para o leitor ter um bom exemplo: a NET poderia cobrar mais caro para acessar o Netflix, serviço concorrente, sobre o argumento de que utiliza muito a banda e, ainda, poderia cobrar do próprio Netflix valores diferenciados para que o acesso a seus servidores tenham velocidade razoável, a fim de permitir uma boa experiência visual ao consumidor. Não para por aí. Sem neutralidade da rede, a própria liberdade de expressão restaria comprometida, uma vez que o acesso a informação, um dos fundamentos para o pleno exercício do “freedom speech”, poderia ser comprometido, já que um usuário de baixa renda não teria condições de arcar com um “plano ilimitado”, que dê acesso a todos os portais de notícia e talvez seja obrigado a anuir com o plano que permita apenas acesso ao portal de notícias de empresa integrante ou parceira do grupo econômico do próprio provedor de conexão.
As teles defendem-se dizendo que não farão controle de conteúdo e que apenas desejam mitigar o custo elevado para manter a conexão à internet, cujos serviços, disruptivos ou não, demandam cada vez mais largura de banda. A questão é que sem a neutralidade garantida, elas terão o incentivo para assim procederem e nada poderemos fazer para impedi-las. O interesse de ser remunerado pelo elevado investimento é legítimo, sem dúvida, mas deve vir por outros caminhos, sem ferir a neutralidade da rede.
Essa decisão da FCC reflete uma mudança de postura do governo americano já anunciada desde a campanha do atual presidente Donald Trump. Lá, a neutralidade estava sendo mantida apenas por uma decisão de órgão regulamentador, aqui no Brasil, temos tal preceito positivado em lei, no artigo 9o do Marco Civil da Internet, Lei n. 12.965/14. Talvez agora muitos críticos dessa lei, possam finalmente entender sua importância e o porquê de ser uma lei aplaudida por personalidades da internet em todo o mundo. Nas palavras do único brasileiro no Hall da Fama da Internet e conselheiro do Comitê Gestor da Internet do Brasil, como “Representante de Notório Saber em Assunto da Internet”, Demi Getschko: “Marco Civil não está aí para resolver problemas, mas para que não se criem problemas”.
O MCI foi criado justamente para garantir que a internet como a conhecemos não deixe de existir por influência de grupos econômicos, interesses políticos ou mesmo religiosos. A neutralidade da rede é uma garantia básica, um princípio fundamental para o uso da rede mundial de computadores de forma livre e inovadora.
Precisamos ficar atentos para que a sanha americana não seja utilizada para fundamentar iniciativas similares no Brasil, como já vista em alguns projetos de lei que visam flexibilizar o MCI. Hoje, por mais que a rede seja global, estamos juridicamente mais protegidos e devemos utilizar esse nosso diferencial de segurança jurídica para nos tornarmos um país que valorize a inovação, quem sabe até trazendo startups americanas sufocadas pela decisão do governo Trump para nosso ecossistema aonde não precisarão celebrar acordos comerciais com as teles ou aonde todos usuários, independente da velocidade do plano (e não plano por conteúdo) poderão acessar seus serviços.
Sem neutralidade, a internet poderá ser tudo, menos Internet.
* Rafael Maciel é advogado especialista em Direito Empresarial e em Direito Digital, e também atual vice-presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/GO.
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